Publicado originalmente em inglês no jornal católico The Remnant, na edição de 20/out/2015.
Autor: Andrew J. Clarendon
Tradução: André Carezia
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Em julho de 2015, o Cardeal Ennio Antonelli, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Família, deu uma palestra intitulada “A Crise do Matrimônio e a Eucaristia”, na qual afirmou:
Eu acredito firmemente que a maior urgência pastoral de hoje é a formação de famílias cristãs exemplares, capazes de dar testemunho concreto do fato de que o matrimônio cristão é belo e possível de ser cumprido.[1]
Com a segunda sessão do Sínodo da Família agora em andamento, bem no meio de uma alastrada crise na vida familiar, a Conferência da Angelus Press [de 9 a 11 de outubro] deste ano é o tempo oportuno para discutir a família católica. Não somente discutir doutrina e filosofia, assuntos pastorais, psicológicos, culturais e educacionais, mas também lançar um olhar aos santos à procura de iluminação, de como ser esposos e pais heróicos, de como ver a beleza matrimonial mencionada pelo Cardeal.
Para se juntar à Sagrada Família e aos vários santos do passado, na próxima semana [18/out/2015] ocorrerá a canonização de dois novos santos: Luís e Zélia Martin, os pais de Santa Teresa de Lisieux, e os primeiros santos na história a serem canonizados como casal ao invés de separadamente. É significativo como justo agora, com a estrutura da família em debate e sob ataque, que a Providência nos dê este marido e esta esposa como modelos. Há santos cujas vidas mais admiramos que imitamos: um São Simeão Estilita, que viveu quase 40 anos sobre o topo de um pilar, ou as grandes penitências de Santa Maria do Egito – pessoas tão ascéticas e avançadas na vida espiritual que quase não pareciam ser humanas. Nas representações artísticas de santos, ou na hagiografia, algumas vezes encontramos o extremo oposto: santos doces e de faces rosadas, com sorrisos forçados, cercados de nuvens de algodão-doce, como se a vida real neste vale de lágrimas fosse um jogo de Pollyanna que só agradasse às mocinhas novas – e mesmo assim, nem todas. Quem começa a conhecer Luís e Zélia Martin impressiona-se imediatamente em como suas vidas eram normais, quão fácil é simpatizar com eles. Depois de ler a biografia, entretanto, seus vários sofrimentos certamente põem um fim a eventuais suposições sobre joguinhos de Pollyanna. Eu gostaria de começar fazendo um breve relato da época deles, antes de prosseguir para a história deles.
Eles viveram uma tradicional vida católica francesa, em uma época de mudanças extraordinárias. Luís nasceu em 1823 e viveu até quase o fim do século; Zélia era oito anos mais nova e morreu em 1877 aos 45 anos de idade, então ambos viveram as mudanças de meados do século XIX. Os pais de ambos foram capitães nas forças de Napoleão, passaram pelas guerras, e se estabeleceram em Alençon, Normandia, a aproximadamente 200 km a oeste de Paris. Depois da derrota final de Napoleão, a França sofreu várias revoluções com a restauração de vários ramos da monarquia de 1814 a 1848. Depois das revoluções liberais de 1848, que atingiram a Europa toda, Luís Napoleão – sobrinho do Imperador – subiu ao poder em 1852 como Napoleão III. Ele foi levado a uma guerra contra o poder crescente da Prússia em 1870. A França foi esmagada na guerra Franco-Prussiana; Luís e Zélia Martin, assim como muitas famílias, foram forçadas a hospedar soldados prussianos durante a ocupação. O resultado foi que Napoleão III acabou deposto e um governo liberal, anti-católico, foi estabelecido: a Terceira República. O anti-clericalismo da Revolução Francesa continuava influenciando a cultura francesa, e era concretamente manifesto na ação do governo “decretando educação secular, embora se permitisse às escolas católicas continuarem funcionando,… o fechamento de algumas comunidades religiosas, e, em 27 de maio de 1871, o assassinato do arcebispo de Paris junto com 64 padres”[2] pela Comuna de Paris, que teve vida curta. Politicamente falando, a Europa testemunhou o triunfo aparente das forças protestantes – Reino Unido, EUA, Prússia – juntamente com idéias liberais cada vez mais aceitas; o frágil balanço de forças, mantido pelas várias alianças, ruiu menos de 40 anos depois da morte de Luís Martin, e resultou na catastrófica destruição da 1a. Guerra Mundial, chamada pelo Papa Bento XV de “o suicídio da Europa civilizada.”[3]
Durante essa era de revoluções políticas, uma das maiores mudanças culturais e econômicas estava ocorrendo: a Revolução Industrial. O século XIX é a era da estrada de ferro, das grandes fábricas que tragavam enormes quantidades de pessoas do campo para as cidades, e de pobreza, doença e epidemias pavorosas. Muitos dos avanços da medicina, que usufruímos hoje, eram desconhecidos; como a própria família Martin experimentou pessoalmente, a taxa de mortalidade infantil ficava entre 15% e 20%.[4] Culturalmente, o século XIX foi uma era de tremenda energia, mas uma energia que era normalmente fruto da ansiedade, e que desembocou na rejeição da civilização ocidental, de várias maneiras. No início do século XIX a Europa estava excitada com o Romantismo, que criticava o racionalismo do século anterior sem dar entretanto uma solução real e duradoura. Quando Luís Martin nasceu em 1823, Beethoven estava escrevendo sua nona sinfonia e Byron era o poeta inglês mais famoso do mundo. Os anos 1840-50 são a era de ouro da “grande ópera” e das grandes novelas sociais de Dickens na Inglaterra, e de Victor Hugo na França – Santa Teresa citou algumas linhas de Hugo durante sua última doença.[5] Ainda antes da morte de Zélia, em 1877, a cultura ocidental já estava em transição para o modernismo: Baudelaire publicou Le Fleurs du Mal em 1857; a primeira exibição de quadros impressionistas se deu em Paris, um ano antes de Santa Teresa nascer; os primeiros trabalhos de Debussy datam da mesma época da morte de Luís; o manifesto comunista foi publicado em 1848; a Origem das Espécies de Darwin, em 1859. Em seu poema “A praia de Dover”, de 1867, Matthew Arnold lamenta que “o mar da fé” está recuando com “melancolia e um longo rugido de ressaca”, deixando apenas “uma tenebrosa planície… onde exércitos ignorantes lutam à noite.”
Em resumo: como frutos dos problemas dos séculos anteriores, os erros do início do modernismo no século XIX se reduzem, como Dr. Rao apontou, a um erro: o naturalismo. É um fato sub-valorizado que a negação do sobrenatural é a essência da definição de modernismo de São Pio X: “a síntese de todas as heresias”, como ele escreveu na encíclica Pascendi, de 1907 – uma data surpreendentemente precoce para aqueles pouco familiarizados com essa história. Luís Martin, cujo pai lutou por Napoleão, tinha morrido apenas treze anos antes do papa ser obrigado a alertar o rebanho que a própria subsistência da Fé corria grande perigo.
Obviamente que os papas do século XIX também viram os sinais dos tempos. Para dar apenas alguns exemplos, enquanto Luís e Zélia viviam, o Bem-aventurado Pio IX escreveu seus tratados anti-modernistas, convocou o Concílio Vaticano I, e proclamou o dogma da Imaculada Conceição. Um pouco antes da morte de Luís, Leão XIII publicou sua grande encíclica social Rerum Novarum.
Finalmente, esse período é também marcado por certo número de aparições de Nossa Senhora: entre 1830 e 1871, ela apareceu em cinco diferentes locais na França, incluindo Paris como Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, La Salette em 1846, e Lourdes em 1858. Nessas aparições, Nossa Senhora emitiu alertas, pediu penitência, e assegurou proteção a seus filhos. “Foram os pedidos e orientações de Maria que formaram parte da espiritualidade de Luís e Zélia”[6] e de seus filhos.
Foi durante esse tempo, em que grandes batalhas físicas e espirituais eram travadas, que Luís e Zélia se conheceram, se amaram, viveram e morreram. Foi somente por uma intervenção direta da Providência que eles se encontraram. Luís, filho de um homem conhecido por sua piedade, decidiu se tornar relojoeiro, deixando Alençon aos 19 anos para estudar com um primo em Rennes. Enquanto passava férias na Suíça, ele visitou o mosteiro agostiniano de São Bernardo, e acabou ficando inspirado a seguir sua vocação. O prior lhe disse para voltar para casa e aprender latim, “porque sem isso não se podia pensar em sua admissão ao mosteiro. Quando ele soubesse latim, poderia voltar e sua vocação seria examinada com cuidado.”[7] Luís estudou com afinco durante um ano, quando então, por razões ignoradas – saúde ruim, falta de aptidão, talvez uma percepção de que não tinha vocação – ele interrompeu os estudos. Depois de ficar três anos em Paris para terminar sua educação como relojoeiro, ele retornou a Alençon como mestre no seu ofício. Ele abriu uma pequena relojoaria, à qual logo em seguida acrescentou um negócio de jóias. Ele viveu por quase oito anos em uma rua tranqüila – “uma vida de trabalho contínuo e grande piedade, [que] persuadiu as pessoas de que ele havia se devotado a uma vida celibatária.”[8] Ele assistia à Missa diariamente, visitava freqüentemente o Santíssimo Sacramento, e – ao contrário de todos os outros joalheiros da cidade – se recusava a abrir sua loja aos domingos. Luís também “fazia muitas e longas caminhadas solitárias no campo, mas pescar…era sua diversão favorita, enviando a maior parte da pesca para o convento das irmãs clarissas.”[9] Depois de alguns anos, ele comprou um lugar chamado Pavilhão, com uma torre hexagonal e um jardim onde “ele podia guardar sua vara de pesca, cuidar um pouco do jardim, e ler ou sentar sozinho e meditar.”[10] Tudo indicava que Luís estava se organizando para ter uma devota vida de solteiro.
Com Zélia não foi muito diferente. Segunda de três crianças, ela e sua irmã mais velha eram alunas das Irmãs do Sagrado Coração, e eram atraídas para a vida religiosa enquanto cresciam. Sua irmã Marie Louise se tornou uma irmã da Visitação, mas a Zélia disseram que não tinha vocação. Ela “aceitou essa decisão…com grande tristeza, até o final de sua vida ela sentiu anseios ocasionais pelo claustro.”[11] Incerta sobre o que fazer então, ela se voltou para a Mãe Santíssima; na festa da Imaculada Conceição de 1851, ouviu uma voz interior que dizia claramente: “vá e faça ponto de Alençon” – um tipo de laço que dava renome à cidade. Depois do curso e da certificação, ela montou uma loja na parte da frente da sua casa; após um tempo, ela passou a contar com uma equipe de funcionárias que fabricavam os laços enquanto ela montava os pedaços e fazia reparos.[12] “Mais tarde, [Zélia] diria que raramente ela fora mais feliz do que nesses momentos sentada à janela montando laços.”[13] Assim como Luís Martin no outro lado da cidade, Zélia Guérin se acomodou à vida pacata de artesã – um evidente contraste com a vida de operários de fábrica da Revolução Industrial de meados do século – e destinando-se aparentemente a uma vida de solteira.
Tudo isso mudou num dia de abril de 1858. Zélia cruzava a ponte Saint-Léonard e “passou por um homem cuja aparência chamou a atenção dela. De novo ela ouviu a voz interior: ‘este é aquele que preparei para você.’ Ela fez perguntas discretas sobre ele, descobriu que seu nome era Luís Martin, e conseguiu ser apresentada a ele. Não sabemos nada de seu namoro, exceto que foi bem curto, já que se casaram [em 13 de julho de 1858] três meses depois que [Zélia passou por Luís] na ponte”[14]; três dias depois aconteceu a última aparição de Nossa Senhora de Lourdes. Fica claro, a partir de suas cartas e do testemunho de seus filhos e parentes, que foi um verdadeiro amor à primeira vista. Ainda preservado está o medalhão que Luís projetou, gravou, e deu a Zélia no dia de seu casamento: de um lado, suas iniciais e a data do casamento; do outro, as imagens de Tobias e Sara do Antigo Testamento. “O gesto de Luís foi [uma] expressão sutil, embora poderosa, daquilo que estava em seu coração, e de como ele tencionava viver em matrimônio com Zélia.”[15] No livro de Tobias, o arcanjo Rafael alerta Tobias que “os que se casam, banindo Deus de seu coração e de seu pensamento, e se entregam à sua paixão como o cavalo e o burro, que não têm entendimento, sobre estes o demônio tem poder.”[16] Depois de um período de continência, Tobias deve “aproximar-se da jovem no temor ao Senhor, mais com o desejo de ter filhos que o ímpeto da paixão. Obterá assim para os seus filhos a bênção prometida à raça de Abraão.”[17] É o que ele faz, dizendo a Sara: “Porque somos filhos dos santos, e não nos devemos casar como os pagãos que não conhecem a Deus.”[18] Até que, no final do livro de Tobias, Rafael revela sua verdadeira identidade e elogia o velho Tobit e seu filho por suas boas obras e fidelidade:
Boa coisa é a oração acompanhada de jejum, e a esmola é preferível aos tesouros de ouro escondidos, porque a esmola livra da morte: ela apaga os pecados e faz encontrar a misericórdia e a vida eterna; aqueles, porém, que praticam a injustiça e o pecado são os seus próprios inimigos… Quando tu oravas com lágrimas e enterravas os mortos, quando deixavas a tua refeição e ias ocultar os mortos em tua casa durante o dia, para sepultá-los quando viesse a noite, eu apresentava as tuas orações ao Senhor. Mas porque eras agradável ao Senhor, foi preciso que a tentação te provasse.[19]
Esses versos são essenciais para entendermos tanto a vida privada de Luís, quanto seu casamento com Zélia, porque eles viveram de acordo com esses princípios; a sabedoria contida nesse antigo livro é de grande ajuda para tratarmos da atual crise no casamento e na família.
Luís, a princípio, insistiu numa forma pouco usual de matrimônio: que ele e Zélia vivessem como irmão e irmã, aparentemente de maneira a imitar mais de perto a Santa Mãe e São José; para, nas palavras do próprio Luís, representar “de maneira mais perfeita a casta e toda espiritual união de Jesus Cristo com Sua Igreja.”[20] Embora ela ansiasse por filhos, Zélia se submeteu e ambos permaneceram celibatários por dez meses, até que a orientação de um diretor espiritual fez Luís mudar de idéia. Ao longo dos treze anos seguintes, de 1860 a 1873, eles tiveram nove filhos; o objetivo explícito, nas palavras da própria Zélia, era que ela e Luís “fundassem uma família de santos… Seus desejos foram atendidos: de seus nove filhos, quatro foram para Deus entre seis meses e seis anos; os outros cinco eram meninas, e se tornaram freiras. Todos tinham o primeiro nome baseado em Nossa Senhora:”[21] Marie-Louise, Marie-Pauline, Marie-Léonie, Marie-Hélène, Marie-Joseph-Louis, Marie-Joseph-Jean-Baptiste, Marie-Céline, Marie-Mélanie-Thérèse, e por último Marie-Françoise-Thérèse, a futura Pequena Flor. “Das filhas que sobreviveram, Marie-Louise, que por ser a primogênita era chamada simplesmente [Marie], não tinha nem quatorze anos quando a mais nova, Thérèse, nasceu.”[22] Luís tinha apelidos para quase todas as crianças, alguns inspirados em seu ofício como joalheiro: Marie era seu “diamante”, e Pauline era sua “pérola”; Céline era “a destemida”, e Thérèse, querida de ambos os pais, era conhecida como “minha rainha”. Em uma época de significativa mortalidade infantil, todas as nove crianças enfrentaram, em algum momento, doenças potencialmente mortais. Os dois garotos, Marie-Joseph e Marie-Jean-Baptiste, morreram de infecção intestinal antes de completarem um ano de idade; os Martin tinham esperança que um deles se tornasse sacerdote e um grande missionário. Mais massacrante ainda foi que, menos de dois anos depois, o quarto filho deles, a menina Marie-Hélène, morreu de causa desconhecida aos cinco anos e meio. Depois da morte de Hélène, a irmã de Zélia escreveu-lhe do convento em Le Mans as seguintes palavras proféticas:
Essa fé e essa confiança de vocês, que nunca vacilam, um dia terão recompensa – e gloriosa será. Estejam bem certos de que Deus os abençoará, e que o abismo de seus sofrimentos se igualará à consolação reservada a vocês. Pois a recompensa não será boa se Deus, bem satisfeito com vocês, lhes der aquela grande santa que, para Sua Glória, vocês têm pedido tanto?[23]
Embora tenha sido capaz de amamentar, ela mesma, seus três primeiros filhos, aquilo que depois se revelou ser um câncer de mama tornou impossível a amamentação das outras crianças. Como a fórmula infantil tinha acabado de ser inventada, e ainda estava sendo aperfeiçoada, isso significava contratar uma ama-de-leite. Infelizmente, havia uma escassez de amas-de-leite fora das grandes cidades, obrigando as mães desesperadas a deixarem seus bebês com estranhas – freqüentemente em outra cidade – até desmamarem. A última criança Martin a morrer foi Marie-Mélanie-Thérèse, que faleceu de inanição com sete semanas, esquecida por uma ama-de-leite que se revelou ser alcoólatra.[24] Em outubro do ano seguinte, 1871, Zélia escreveu o seguinte para sua cunhada que tinha acabado de perder um bebê:
Quando eu fechei os olhos de minhas pequenas e queridas crianças, e quando as enterrei, eu senti grande dor, mas foi sempre de forma resignada. Eu não me arrependo das tristezas e dos problemas que enfrentei por elas. Muitas pessoas me disseram: “Seria muito melhor nunca tê-las tido.” Eu não suporto esse tipo de conversa. Eu não penso que as tristezas e os problemas podem ser comparados à felicidade eterna de minhas crianças. Note que elas não se perderam para sempre. A vida é curta e cheia de misérias. Nós as veremos de novo no Céu. Foi sobretudo na morte de meu primeiro filho que senti mais fundo a alegria de ter um filho no Céu, porque Deus me mostrou de modo evidente que Ele aceitara meu sacrifício. Veja você, minha querida irmã, é uma coisa muito boa ter anjinhos no Céu, mas não é menos doloroso perdê-los. Essas são as grandes tristezas de nossa vida.[25]
Uma resposta dessa a tal sofrimento é coisa de um santo heroísmo.
Enquanto isso, a vida da família tinha que continuar. Naquilo que podiam controlar, os Martin batalhavam para fazer de seu lar um lugar de santidade; era um lar em que as coisas católicas ordinárias eram feitas extraordinariamente bem. Luís e Zélia mantiveram a dedicação à liturgia por toda sua vida de casados. Eles iam diariamente à Missa das 05:45h e recebiam com freqüência a Santa Comunhão – uma raridade numa época ainda afetada pelo jansenismo. Quando cresciam o suficiente, as crianças passavam a acompanhá-los na Missa. Luís, ou uma das meninas mais velhas, lia para a família toda noite algumas páginas de “O Ano Litúrgico” de Dom Guéranger. Ambos obedeciam os jejuns da Igreja e o descanso dominical. Claro: havia o terço diário e outras devoções; o altar familiar era especialmente decorado em maio, mês de Maria, por exemplo. Zélia pedia às meninas para rezarem aos seus santos irmãos falecidos, para que intercedessem pela família. Ela sempre invocava outros santos também, e era especialmente devota de Santa Margarida Maria e de Santa Joana Francisca de Chantal; ela era franciscana da Terceira Ordem, enquanto Luís era membro de várias organizações católicas.[26] A leitura espiritual era encorajada em casa; antes de entrar para o Carmelo, Santa Terezinha tinha lido a Imitação de Cristo tantas vezes que a tinha memorizado.[27] Marie, Pauline e Thérèse eram todas membros da Congregação Mariana. Por fim, ao contrário de muitas em nosso tempo de crise, as meninas Martin tinham boas escolas católicas para freqüentar, escolas cheias de professoras religiosas devotas.
Recordando Tobias, de seu medalhão de casamento, Luís e Zélia “praticavam uma caridade ativa. Nunca ninguém necessitado apelou ao Sr. Martin em vão.”[28] A família tinha boas condições financeiras, graças ao negócio de relojoaria de Luís e especialmente devido à fabricação de laços de Zélia. Tão boas que, mais tarde, Luís fez o sacrifício de vender sua empresa para poder administrar as finanças do negócio de Zélia, e fazer as viagens para compras de insumos. Esse status de classe média significava que eles tinham tanto os meios de ajudar o próximo quanto a oportunidade de ensinar valiosas lições a seus filhos. “Uma de suas filhas disse, muito depois que eles já haviam morrido, que a coisa mais impressionante a respeito de seus pais era seu desapego de todas as coisas mundanas. ‘Nossa vida em casa era simples e patriarcal, e a eternidade era a preocupação dominante de meu pai e de minha mãe’.”[29]
Seria incorreto pensar, entretanto, que Luís e Zélia, mesmo com toda a convicção de que tinham uma vocação religiosa em sua juventude, exigissem de suas crianças uma vida exclusivamente de oração e penitência. Na verdade, Zélia teve uma infância especialmente infeliz justamente porque sua mãe era muito rígida, não permitindo nem mesmo que suas filhas tivessem bonecas. Luís levava suas crianças para longas caminhadas no campo, “com tardes passadas em uma feira, entardeceres animados com castanhas assadas, canções e poemas… e as imitações nas quais Luís era especialmente bom.”[30] A casa deles tinha também um agradável jardim para brincar. Exteriormente, eles aparentavam ser uma típica – embora devota – família burguesa francesa. Luís achava que Zélia era “muito extravagante ao vestir as meninas” – e ela respondia que elas não deveriam se vestir como se fossem esfarrapadas ou freiras – e Zélia achava que Luís “as mimava muito.”[31] No fundo, nota-se como eles se complementavam. Certamente a ordem e disciplina eram exigidas em casa, mas ficava claro para as meninas que isso tinha seu fundamento no amor. “No processo de beatificação de Terezinha, Marie declarou: ‘A educação em nossa família era afetuosa, mas de modo algum era branda… Nós nos atínhamos à conduta, à ordem, à pontualidade.’ Nem o desvio da linguagem, nem a preguiça, eram tolerados. Defeitos eram identificados e suprimidos logo aos primeiros sinais, a teimosia e os caprichos eram subjugados. Essa firmeza baseada no amor, sempre orientada para o bem da criança, era sempre praticada com discernimento…”[32] Embora Terezinha tivesse apenas quatro ano e meio quando sua mãe morreu, um dos melhores retratos da vida familiar está na sua autobiografia, História de uma Alma:
Foi vontade de Deus, durante toda minha vida, me cercar de amor, e as primeiras memórias que eu tenho são marcadas com sorrisos e carícias ternas. Mas embora Ele tenha posto tanto amor à minha volta, Ele também mandou muito amor para dentro de meu pequeno coração, tornando-o aquecido e afetuoso. Eu amava demais mamãe e papai. O que posso dizer das tardes de inverno em casa, em especial as tardes de domingo? Ah! Como eu adorava, depois de terminar o jogo de damas, sentar-me com Céline nos joelhos de papai. Ele costumava contar, com sua bela voz, melodias que preenchiam a alma com profundos pensamentos, ou então, embalando-nos delicadamente, ele recitava poemas que ensinavam as verdades eternas. Depois nós todos subíamos para fazer nossas orações noturnas, e a pequena Rainha ficava sozinha ao lado de seu Rei, sendo suficiente apenas olharmos para ele para vermos como os santos rezam.[33]
Essas pequenas coisas, bem-feitas, são a essência da vida de uma família santa que produziu cinco vocações religiosas e a “Pequena Via” de uma das maiores santas modernas. Claro que havia problemas, já que a família Martin vivia, como todos nós, neste vale de lágrimas. Além das mortes infantis trágicas, a terceira filha, Léonie, era uma criança que dava trabalho. A menos talentosa das cinco filhas era empestada de doenças, tinha um temperamento difícil, e foi expulsa da escola três vezes. Depois se descobriu que ela tinha sido abusada emocionalmente por uma das criadas. Em uma carta de janeiro de 1877 à sua cunhada, Zélia declara que pediu à sua santa irmã (a freira) que entregasse uma mensagem à Mãe Santíssima assim que chegasse ao céu. Zélia escreve:
Assim que você chegar no céu, procure a Mãe Santíssima e diga-lhe: “Minha boa Mãe, tu pregaste uma peça em minha irmã, dando-lhe a pobre Léonie. Ela não é uma criança como a que ela pediu a ti, e tu tens que consertar isso.” Depois, procure a Bem-aventurada Margarida Maria e diga-lhe: “Por que tu a curaste milagrosamente? Teria sido muito melhor deixá-la morrer, e tu tens a obrigação de consciência de reparar essa infeliz situação.” Ela [a irmã de Zélia] ralhou comigo por falar assim, mas eu não o fiz por má intenção, e Deus sabe muito bem disso. [34]
Nas cartas escritas perto de sua morte, Zélia descreve alguma melhora e encerra com uma prece final: “Léonie continua se tornando uma boa criança, mas é um terreno difícil de cultivar, que por certo precisa do orvalho do céu… Se a Mãe Santíssima não me curar, pelo menos pedirei a ela para curar minha filha, para abrir a inteligência dela, e fazê-la santa.”[35] Não há tempo nesta noite para apresentar a história inteira de Léonie, mas basta dizer que essas orações de uma Mônica moderna foram atendidas: depois de várias tentativas de seguir uma vocação, Léonie foi finalmente aceita na ordem da Visitação. Lá ela pôs em prática a “pequena via” de sua irmã Sta. Teresa, até sua morte em 1941. À medida que os fiéis foram aprendendo mais sobre sua biografia, eles foram começando a pedir sua intercessão para crianças problemáticas, problemas familiares, ou dúvidas de vocação. Em janeiro deste ano, o bispo de Bayeux-Lisieux aprovou a causa dela, de forma que ela agora é Serva de Deus. Léonie Martin está a caminho de se juntar à sua irmã e aos seus pais no reconhecimento das honras do altar.
Enfim, tanto Zélia quanto Luís foram purificados com sofrimentos físicos no fim de suas vidas. Na primavera de 1865, Zélia sentiu os primeiros sinais do câncer que a mataria doze anos depois.[36] Quando “era menina, ela tinha golpeado sua mama no canto de uma mesa, e agora… tinha um [dolorido] inchaço nessa mama…”[37] Esse caroço continuou a crescer e acabou se tornando canceroso, assim como outro no seu pescoço. Em outubro de 1876, ela sentia dores constantes, sendo já “uma mulher muito cansada, tanto de cuidar dos filhos quanto pelo trabalho incessante”;[38] ela finalmente procurou um médico, que lhe disse que uma cirurgia seria impossível, e que ela só tinha meses de vida. Embora resignada a morrer, ela implorou à Mãe Santíssima uma cura milagrosa, porque tinha medo de deixar suas crianças – em particular Léonie – sem seus cuidados.
Ela fez uma peregrinação a Lourdes no verão de 1877, mas não foi curada. “Ela viveu somente alguns meses a mais, e esses meses se passaram em agonia.”[39] O tumor começou a perfurar a pele, produzindo uma secreção que enchia a sala com um cheiro terrível. “Céline e Terezinha iam todos os dias à casa de uma amiga para evitar ver e ouvir esses horrores.”[40] Depois de receber a extrema-unção, ela morreu em 26 de agosto de 1877; nas mãos dela havia um terço que sua santa irmã havia beijado antes de morrer alguns meses antes. Terezinha escreveu, anos depois, sobre como se lembrava de tocar com os lábios a testa gelada da mãe, na manhã seguinte. No dia do enterro, Céline escolheu Marie como sua nova “mãe”; Terezinha, imitando-a, escolheu Pauline.[41] Luís decidiu se mudar para mais perto da família de Zélia, os Guérin, e então comprou uma casa – chamada Les Buissonnets – em Lisieux em novembro. Terezinha viveu nela até entrar no Carmelo de Lisieux em 1888.
Luís viveu o resto de sua vida como viúvo, devotado às suas filhas, à medida que cada uma ia deixando-o para entrar na vida religiosa. O homem contemplativo, que também adorava passear pela natureza, sofreu uma paralisia na perna em 1887 e depois o início do que é considerado pela maioria um endurecimento das artérias cerebrais – uma duradoura e terrível doença que Terezinha anteviu com seis anos, numa visão.[42] Uma série de derrames provocou choros, lágrimas e fala desconexa, alternados com períodos de alívio. Em fevereiro de 1889, Luís se sentiu ameaçado e, no intento de defender suas filhas de agressores imaginários, se armou com um revólver. Esse episódio sério levou a seu confinamento no Bon Sauveur de Caen, um hospital especializado em doentes mentais. Durante os três anos dele lá, as recaídas foram seguidas de momentos de lucidez; ele era conhecido como o “idoso venerável” e “bom patriarca”. Ele recusou o quarto particular oferecido a ele, e compartilhava com suas companhias as guloseimas que ele recebia de sua família. Quando tinha condições, ele assistia à Missa todo dia na capela do hospital. Ele estava consciente do apostolado dos doentes, e mencionava a necessidade de conversão de muitos dos internos. Para uma das irmãs enfermeiras, Luís admitiu: “Por mim, eu seria apóstolo em algum outro lugar. Mas esta é a vontade de Deus. Eu acho que é assim para domar meu orgulho.”[43] Em maio de 1892, já preso a uma cadeira de rodas, ele obteve permissão para retornar a Lisieux e oferecer um último adeus às suas três filhas carmelitas – já que Céline havia decidido entrar apenas depois da morte dele.
“Quando chegou o tempo de deixar suas filhas, [depois de ter conseguido apenas murmurar coisas incoerentes] ele ergueu os olhos e sua mão, com um dedo esticado, sufocando em soluços. Desse jeito ele ficou por longo tempo, capaz apenas de dizer as palavras ‘No céu! No céu!’”[44] Depois de um ataque cardíaco e de uma queda, Luís passou por seus últimos sofrimentos terrenos: a unção dos enfermos foi dada em 28 de junho de 1894 e ele morreu no dia seguinte.[45] Sta. Terezinha “ficou contente pelo descanso dele, e rezou para ele como se reza a um santo”[46]; ela escreveu à sua irmã: “como foi doce e precioso esse cálice amargo, já que de cada aflição do coração vieram somente suspiros de amor agradecido. Nós não estávamos mais andando – nós corríamos, nós voávamos pela estrada da perfeição.”[47] À medida que a fama de Sta. Terezinha se espalhava e, graças à sua autobiográfica História de uma Alma e a vários livros de sua irmã Céline, os fiéis aprendiam mais sobre Luís e Zélia, eles começaram a rogar pela intercessão deles. A partir de 1957, suas causas avançaram separadamente mas em paralelo, em diferentes dioceses, já que morreram em lugares diferentes. Em 1971, as causas foram fundidas e eles progrediram como um casal. Em 1994, o Papa João Paulo II reconheceu suas virtudes heróicas e declarou-os “veneráveis”. Os milagres da beatificação e da canonização envolveram, ambos, a cura de crianças pequenas: primeiro, em 2002, um recém-nascido italiano, cujos pulmões subdesenvolvidos foram inexplicavelmente curados; segundo, em 2008, a cura completa de uma recém-nascida espanhola, nascida prematura com hemorragia cerebral e outras complicações. Luís e Zélia foram beatificados em 19 de outubro de 2008 na Basilica de Sta. Terezinha, em Lisieux; sua canonização está agendada para o próximo domingo, 18 de outubro de 2015, enquanto o Sínodo da Família se encerra.
No consistório que aprovou a canonização, o Cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para a Causa dos Santos, mencionou o “testemunho extraordinário de espiritualidade conjugal e familiar” de Luís e Zélia, sua “vida exemplar de fé, dedicação constantemente realista aos valores ideais, e atenção persistente ao pobre.”[48] Em nossa era de angústias, em que, como a Irmã Lúcia de Fátima escreveu ao Cardeal Carlo Caffarra, “o confronto final entre o Senhor e o reino de Satanás será sobre a família e sobre o matrimônio… [e em que] qualquer um que trabalhe pela santidade do matrimônio e da família será sempre combatido e contrariado de todos os modos, porque este é o ponto decisivo”[49], há alegria percorrendo o mundo católico com mais esses dois santos para rogarem por nós. Mais uma vez, a Igreja nossa mãe coloca diante de nós um exemplo humano real para nos dar esperança, juntamente com um ideal pelo qual nos esforçar. Luís e Zélia Martin, rogai por nossos filhos, rogai por nossas famílias, rogai por todos nós. Amém.
Notas:
[1] “Another cardinal speaks out against Kaspar,” SSPX News and Events, http://sspx.org/en/news-events/news/another-cardinal-speaks-out-against-kasper-8737
[2] A Call to a Deeper Love: The Family Correspondence of the Parents of Saint Thérèse of the Child Jesus, 1863-1885, trad. Ann Connors Hess, ed. Dr. Frances Renda (Staten Island, NY: St Pauls, 2011), xxxii.
[3] Papa Bento XV, Carta de 27 abril 1915 ao Cardeal Pietro Gasparri, em http://w2.vatican.va/content/benedict-xv/it/letters/1917/documents/hf_ben-xv_let_19170505_regina-pacis.html
[4] Deeper Love, 70, n. 151.
[5] Irmã Genoveva da Sagrada Face, Minha Irmã Santa Teresa (Rockford, IL: Tan Books, 1997), 227.
[6] Deeper Love, xxxvi.
[7] John Beevers, Storm of Glory (Garden City, NY: Image Books, 1955), 11.
[8] Beevers 11.
[9] Beevers 12.
[10] Beevers 12.
[11] Beevers 13.
[12] Arquivos do Carmelo de Lisieux, “The Martin Couple” em http://www.archives-carmel-lisieux.fr/english/carmel/index.php/couple-martin.
[13] Beevers 14.
[14] Beevers 14.
[15] Deeper Love xxii.
[16] Tobias 6,17.
[17] Tobias 6,22.
[18] Tobias 8,5.
[19] Tobias 12, 8-10, 12-13.
[20] Beevers 15.
[21] Henri Ghéon, “A Verdade sobre Teresa” (2011), 21.
[22] Ghéon 21.
[23] Beevers 18.
[24] Deeper Love 401.
[25] Deeper Love 90-91.
[26] Deeper Love xxxviii.
[27] Beevers 52.
[28] Beevers 15.
[29] Beevers 15-16.
[30] Arquivos do Carmelo de Lisieux.
[31] Deeper Love xiv.
[32] Arquivos do Carmelo de Lisieux.
[33] Santa Teresa de Lisieux, História de uma Alma, 3a. edição, tradução de John Clarke, O.C.D. (Washington, D.C.: ICS Publications, 1996), 17,43.
[34] Deeper Love 270.
[35] Deeper Love 315, 320.
[36] Beevers 16.
[37] Beevers 16.
[39] Beevers 30.
[40] Beevers 30.
[41] Beevers 31.
[42] Beevers 79.
[43] Beevers 77.
[44] Ghéon 117.
[45] Arquivos do Carmelo de Lisieux.
[46] Ghéon 117.
[47] Beevers 78-79.
[48] Radio Vaticana, 27 de junho de 2015 em http://www.news.va/en/news/pope–francis–approves–the–decrees–for–canonization
[49] “Cardinal: ‘What Sister Lucia told me,’ blog do Rorate-Caeli em http://rorate–caeli.blogspot.com/2015/06/cardinal–what–sister–lucia–told–me.html