Autor: Dom Próspero Gueranger, in O Ano Litúrgico.
Tradução: André Carezia
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LUTERO — Ainda que o ciclo do tempo depois de Pentecostes tenha nos manifestado, em numerosas ocasiões, o zelo com que o Espírito Santo vela pela defesa da Igreja, volta a resplandecer neste dia o ensinamento de uma maneira nova. No século XVI um ataque formidável havia se desencadeado contra a Igreja. Satanás havia escolhido como chefe um homem caído, como ele, das alturas do céu. Lutero, agraciado desde sua juventude por predileções próprias dos perfeitos, não soube, em um dia de descaminho, resistir ao espírito de rebeldia. Como Lúcifer, que pretendia ser igual a Deus, ficou face a face com o Vigário do Altíssimo sobre o monte do Testamento[1]; de repente, rodando de abismo em abismo, arrastou atrás de si a terça parte dos astros do céu da santa Igreja[2]. Lei misteriosa e terrível, aquela que tão freqüentemente deixa nas esferas do mal o homem ou o anjo, vencido o poder que devia exercer para o bem e para o amor! Mas a eterna sabedoria jamais fica frustrada; precisamente então, frente à liberdade pervertida do anjo ou do homem, implanta esta outra lei substitutiva e misericordiosa, da qual foi Miguel o primeiro beneficiado.
VOCAÇÃO DE INÁCIO — A vocação de Inácio à santidade acompanha passo a passo em seu crescimento a apostasia de Lutero. Na primavera do ano de 1521, Lutero, desafiando todos os poderes, acabara de abandonar Worms e de refugiar-se em Wartbourgo[3], quando Inácio recebia em Pamplona a ferida que haveria de afastá-lo do mundo e encaminhá-lo pouco depois a Manresa. Valoroso como seus nobres antepassados, desde seus primeiros anos havia se sentido penetrado pelo ardor belicoso que se mostrava nos campos de batalha da terra de Espanha; mas a campanha contra o Mouro havia chegado ao fim precisamente nos dias de seu nascimento[4]. Poderia crer que para satisfazer seus instintos cavalheirescos teria somente porfias mesquinhas?
O único e verdadeiro Rei digno de sua grande alma revela-se a ele na prova que detém seus projetos mundanos; uma nova milícia se apresenta para sua ambição: começa outra cruzada. O ano de 1522 contempla, desde os montes da Catalunha até os de Turingia, o crescimento da estratégia divina da qual unicamente os anjos possuem de fato o segredo.
MONTSERRAT — Admirável campina onde se diria que o céu se contenta em observar os poderes do mal, deixando que tomem a dianteira e apenas reservando-se o direito de fazer superabundar a graça ali mesmo onde pretende abundar a iniqüidade[5]. Assim como no ano anterior, três semanas depois de consumada a rebelião de Lutero, havia tido lugar o primeiro chamado de Inácio; a três semanas igualmente de distância, eis aqui o inferno e o céu exibindo seus eleitos sob as diferentes armaduras que correspondem aos dois campos, cujos chefes serão ambos. Dez meses de estranhas manifestações haviam preparado o substituto de satanás no forçado retiro que ele denominou “seu Patmos”; e em 5 de março, contrariando a ordem de desterro, o trânsfuga do sacerdócio e do claustro abandona Wartbourgo transformado, sob a couraça e o casco, em cavaleiro espúrio. No dia 25 do mesmo mês, na noite gloriosa em que o Verbo se fez carne, o flamante soldado das armas do reino católico, o descendente dos Iñigo e dos Loyola, vestido de saco, insígnia da pobreza que revela seus novos projetos, passa a noite em oração em Montserrat velando as armas. Pendura no altar de Maria sua bem temperada espada, e dali se dirige a lutas desconhecidas que o esperam em um combate sem compaixão por si mesmo.
PARIS — Por sobre a bandeira do livre exame [das escrituras] coloca a sua, com uma única divisa: Para maior glória de Deus! Logo se encontra em Paris (onde Calvino recruta secretamente os futuros huguenotes) para alistar, em favor do Deus dos exércitos, a companhia de vanguarda que deve proteger as hostes cristãs iluminando seu caminho, dando e recebendo os primeiros golpes. A Inglaterra, no início do ano de 1534, imita a Alemanha e os países do Norte em sua apostasia. Em 15 de agosto desse mesmo ano os primeiros soldados de Inácio, junto com ele, selam em Montmartre o compromisso definitivo que mais tarde renovarão em São Paulo Extramuros. Porque aquela tropa fixou em Roma o ponto de encontro, tropa que muito rapidamente crescerá de maneira surpreendente, e cuja profissão particular será a de estar sempre dispostos a dirigir-se, ao menor sinal, a todos os pontos onde o chefe da Igreja militante julgar utilizar bem seu selo, em defesa da fé ou para sua propagação, e para o progresso das almas na doutrina e na vida cristã.
A COMPANHIA DE JESUS — Lábios ilustres disseram[6]: “À primeira vista, o que surpreende na Companhia de Jesus é que para ela a idade madura é contemporânea da primeira formação. Quem conhece os primeiros criadores da Companhia conhece a Companhia inteira em seu espírito, em seu objeto, em seus empreendimentos, em seus procedimentos, em seus métodos. Que geração a que preside em suas origens! Que união de ciência e de atividade, de vida interior e de vida militante! Pode-se dizer que são homens universais, homens de raça gigantesca, em companhia dos quais não somos mais que insetos: de genere giganteo, quibus comparan quasi locustae videbamur.”[7]
INÁCIO E A ORAÇÃO DA IGREJA — Quão comovedora se nos parece a sensibilidade tão cheia de encantos destes primeiros padres da Companhia, indo a pé até Roma, a pé e em jejum, esgotados mas com o coração transbordante de alegria e cantando baixinho os Salmos de Davi! Quando foi indispensável, para responder às necessidades da hora presente, abandonar no novo instituto as grandes tradições da oração pública, não se fez isso sem grande sacrifício por parte de muitas destas almas; Maria, com pena, teve de ceder seu posto a Marta nesse ponto. Pelo espaço de tantos séculos a solene celebração dos Ofícios Divinos — dívida social primária — havia parecido tarefa indispensável de toda família religiosa; era o primeiro alimento da santidade individual de seus membros!
Mas a chegada de novos tempos, semeando por toda parte a degradação e a ruína, reclamava uma exceção tão insólita quanto dolorosa da valente companhia que consagrava sua existência à instabilidade de sobressaltos sem conta e de contínuas incursões por terras inimigas. Inácio compreendeu isso. Sacrificou, em benefício do objetivo que se impunha, a atração pessoal que sentiu toda sua vida pelo canto sagrado, cujas menores notas ao chegarem a seus ouvidos faziam verter nele lágrimas de consolo.
Com a chegada dos últimos tempos e de suas emboscadas, havia soado para a Igreja a hora das milícias especiais, organizadas em acampamentos móveis. Mas quanto mais difícil se tornava exigir destas tropas beneméritas, embebidas no contínuo batalhar exterior, os hábitos e costumes dos que protegiam a Cidade Santa, tanto mais Santo Inácio desprezava o estranho contrassenso que pretendia reformar os costumes do povo cristão segundo o modo de vida exigido pelo serviço de reconhecimento e de vanguarda, ao qual ele se sacrificou por todos os demais. A terceira das dezoito regras que assenta, como coroação dos Exercícios Espirituais, “para termos em nós os verdadeiros sentidos da Igreja ortodoxa”, recomenda aos fiéis os cantos da Igreja, os salmos, e as diferentes Horas canônicas no tempo assinalado para cada uma. E, no início do livro, que realmente é o tesouro da Companhia de Jesus, ao estabelecer as condições que permitiriam extrair o melhor fruto possível dos mesmos Exercícios, determina em sua vigésima nota que aquele que puder deve escolher, durante o tempo de sua duração, uma cela que lhe permita facilmente dirigir tanto os Ofícios quanto o Santo Sacrifício. Com isto, que faz pelos outros nosso Santo, senão aconselhar para a prática dos Exercícios o mesmo espírito com que foram compostos, neste retiro bendito de Manresa, onde a participação cotidiana na Missa solene e nos Ofícios do entardecer foram para ele um manancial de delícias celestiais?
Vida — Inácio nasceu, sem dúvida, em outubro de 1491, em Guipúzcoa, da nobre família dos Loyola. Tendo entrado para o serviço do Rei de Navarra, foi ferido em Pamplona em 20 de maio de 1521. No decurso de sua convalescença, leu a Vita Christi de Ludolfo de Saxônia e, auxiliado pela graça divina, resolveu daí em diante seguir a Cristo. Em fevereiro de 1522, partiu para Montserrat com a finalidade de oferecer sua espada à Virgem; depois se dirigiu a Manresa, onde permaneceu um ano entregue à penitência e à oração. Compôs então seu célebre livro dos Exercícios Espirituais, que obteria a aprovação da Sé Apostólica e faria muito bem a inúmeras almas. Em 1523 fez uma peregrinação à Terra Santa, regressando depois à Espanha com o objetivo de estudar para se achar melhor disposto ao serviço de Deus e da Igreja. Com alguns companheiros partiu a Paris, aonde chegaram em 2 de fevereiro de 1528. Inácio recebeu ali sua graduação universitária e assentou os fundamentos da nova Ordem. Tendo estabelecido a ordem em Roma com aprovação de Paulo III, acrescentou aos votos ordinários o de consagrar-se às missões, se a Santa Sé assim o pedisse. Enviou São Francisco Xavier às Índias; ele mesmo lutou ardorosamente contra a heresia luterana; fundou casas de educação para a juventude; trabalhou na renovação da piedade entre os católicos; suas obras prediletas foram o embelezamento dos templos, o ensino do catecismo e a prática dos sacramentos. Por último, depois de ter trabalhado longo tempo para “a maior glória de Deus”, morreu em 31 de julho de 1556. Foi beatificado em 1609 e canonizado em 1623 junto com São Isidoro Lavrador, Santa Teresa de Ávila e São Francisco Xavier. Em 1922, Pio XI declarou-o patrono de todos os exercícios espirituais.
O SOLDADO DE DEUS — “Esta é a vitória que venceu o mundo: nossa fé.”[8] Tu, por tua vez, mostraste que foste o grande vencedor do mundo, deste mundo no qual o Filho de Deus te elegeu para exaltar Sua bandeira humilhada diante do estandarte de Babel. Estiveste longo tempo quase que sozinho contra os batalhões sempre crescentes dos rebeldes, deixando ao Senhor dos exércitos o cuidado de escolher a hora para que travasses a batalha contra as cortes de Satanás, assim como a escolheu para retirar-te da milícia terrena. Se o mundo tivesse então conhecido teus intentos, teria considerado tudo chacota; e contudo foi um momento tão importante para a história do mundo quanto aquele em que, à semelhança dos mais ilustres capitães a concentrar suas tropas, deste ordem a teus nove companheiros para se dirigirem de três em três à Cidade Santa. Que resultados admiráveis durante aqueles quinze anos em que esta tropa escolhida e recrutada pelo Espírito Santo teve-te como chefe e primeiro general! A heresia varrida da Itália, confundida em Trento, detida em todas as partes, imobilizada até em sua própria casa; imensas conquistas em terras novas, para reparar os danos sofridos em nosso Ocidente; a própria Igreja rejuvenescida em sua beleza, restaurada em seu povo e em seus pastores; assegurada para seus filhos uma educação correspondente aos seus destinos celestiais; por fim, todo lugar onde imprudentemente Satanás havia cantado vitória, em meio a espantosos rugidos, é dominado novamente por este nome de Jesus que faz dobrar todos os joelhos no céu, na terra e nos infernos[9]. Qual glória, ó Inácio, algum dia se igualou a esta, nos exércitos dos reis da terra?
INVOCAÇÃO AO CHEFE GLORIOSO — Vela, do trono que conquistaste com tantas façanhas, sobre estes frutos de tuas obras, e continua mostrando-te como soldado de Deus. Através das contradições que nunca lhes faltaram, mantém teus filhos na posição de honra e valentia que faz deles os sentinelas da vanguarda de tua Igreja. Que sejam fiéis ao espírito de seu glorioso pai, “tendo diante dos olhos, sem cessar, primeiramente o reino de Deus; em seguida, como um caminho que conduz a Ele, a forma de seu instituto, consagrando todas as suas forças para alcançar este objetivo que Deus lhes assinala, seguindo embora cada um a medida da graça que recebeu do Espírito Santo e o grau próprio de sua vocação”[10]. Finalmente, ó cabeça de tão nobre descendência, abraça em teu amor todas as famílias religiosas cuja sorte diante da perseguição veio a ser, nestes dias, tão estreitamente solidária à da tua; bendize particularmente a Ordem monástica que protegeu com suas antigas ramas teus primeiros passos na vida de perfeição, e o nascimento da egrégia Companhia que será tua imperecível coroa nos céus. Protege a Espanha, que te viu nascer não só para a vida terrestre, mas também para a graça da conversão. Roga para que os cristãos aprendam de ti a militar por Deus, a nunca renegar sua bandeira; roga para que todos os homens, debaixo de tuas ordens, recoloquem em Deus seu princípio e seu fim.
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Notas:
[1] Isaías, XIV, 13.
[2] Apoc., XII, 4.
[3] A dieta de Worms, onde teve lugar a ruptura oficial do heresiarca, na presença das diversas ordens do império, viu consumar-se esta ruptura nos últimos dias de abril, e foi em 20 de maio que Inácio recebeu a ferida cuja consequência foi sua conversão.
[4] 1491.
[5] Rom., V, 20.
[6] Cardeal Pie, homilia pronunciada nas festas da beatificação de Pedro Fabro.
[7] “da raça dos gigantes, parecíamos gafanhotos comparados com eles”, Números, XIII, 34.
[8] 1 Jo, V, 4.
[9] Fl, II, 10.
[10] Nota de Paulo III.