(traduzido do capítulo 45 do livro “The Liberal Mind”, de Lyle Rossiter, 2006)
Versão em PDF.
“Em períodos críticos de minha infância, fui dolorosamente privado de amor, empatia, atenção e cuidado. Estas privações me fazem sentir ferido, necessitado, vazio, invejoso e irritado, mas eu tenho que fingir que não tenho essas emoções. Quando eu era pequeno, eu implorava, exigia e chorava para conseguir o que eu queria. Eu ainda quero agir assim, mas corro o risco de me sentir humilhado se o fizer. Não importa o que faço, eu nunca acho que tenho o suficiente do que preciso. Isso é uma injustiça terrível, e por causa dela eu creio ser uma vítima. Não sou paranóico por acreditar nisso; minha falta de confiança é realista. Mas sentir-me necessitado, invejoso e desprovido me deixa também deprimido e sem esperança. Certas horas eu me sinto também em pânico e com ódio. Eu sei que certas pessoas vão me maltratar, como fui maltratado na infância. Sinto-me profundamente magoado e irritado com os maus tratos que sofri nas mãos de vilões do passado e do presente.
“Para me defender contra essas situações, eu tenho que culpar certos indivíduos e grupos por meus problemas, e tenho que fazê-los dar a mim o que quero. Odiando-os por serem grosseiros, cruéis e egoístas, e tirando deles aquilo que têm, eu posso expressar minha ira e me sentir seguro, dono da verdade e poderoso. Culpar e odiar os outros ajuda a me afirmar como vítima, e a ver os outros como vilões aos quais posso punir enquanto tiro deles o que têm. O que eles têm são certos bens, serviços e posições aos quais tenho direito mas ainda não recebi. Para pôr fim a essa injustiça, usarei o poder do Governo para conseguir o que quero. Então deixarei de me sentir necessitado, invejoso e irritado. Não terei mais que implorar, pedir, manipular ou intimidar, porque o Governo vai fazer tudo isso por mim.
“O fato de o Governo poder tomar as coisas dos outros e dá-las a mim é, em si mesmo, gratificante. Preciso ter esse poder sobre os outros para que eu não me sinta desamparado, como eu sentia quando criança. O poder de tomar as coisas dos outros também me permite obter vingança pelas injúrias que suportei, e me permite deixar de sofrer. Além do mais, ganhar coisas satisfaz minha ganância. E eu sou mesmo ganancioso e invejoso, devido às privações que sofri na infância, mas não admito isso nem a mim mesmo nem aos outros. Ao invés disso, eu finjo que não sou invejoso, e nego veementemente ser ganancioso. Disfarço minhas exigências cobiçosas chamando-as de direitos. Os direitos são bens que alguém deve me proporcionar, porque eu os mereço; não devem me ver como ganancioso e ambicioso, mesmo eu sendo essas coisas. Minha razão para eu ter aquilo que os outros têm é minha necessidade legítima. Os esforços deles para manterem o que têm são sua avareza egoísta. Desse modo, eles são os gananciosos, não eu. Além do mais, eles merecem perder o que têm, já que eles tomaram as coisas dos outros. Estas opiniões me ajudam a fingir que não sou invejoso, nem cobiçoso, nem vingativo.
“Eu e outros como eu que somos necessitados, irritados e invejosos rejeitamos quaisquer regras que exigem que mereçamos o que temos. Para conseguir aquilo que é essencial numa boa vida, não deveríamos ter que fazer nada além do que já fizemos. Todos nós já sofremos bastante. Merecemos ser compensados sem mais fardos. As privações que sofremos no passado são o que nos torna dignos de direitos, no presente e no futuro. O simples fato de estarmos vivos e de termos padecido tantas provações, é suficiente para termos direito a benefícios gratuitos. Na verdade merecemos muito mais do que o essencial para uma boa vida, de modo a compensar as adversidades do passado. Por estes motivos, os direitos tradicionais de propriedade não devem impedir a satisfação de nossos direitos. Nós, as vítimas, devemos ter acesso desimpedido às riquezas, poderes e posições dos outros. Não aceitamos a primazia dos direitos de propriedade na proteção da liberdade ordenada, nem achamos que a liberdade individual é um ideal justo. Nossos direitos positivos de termos nossas necessidades satisfeitas e nossas injúrias compensadas são muito mais importantes do que os direitos básicos de propriedade ou a liberdade individual. Ademais, não reconhecemos a soberania das outras pessoas. Não reconhecemos o direito de serem deixados em paz. Nossos direitos são mais importantes do que os alegados direitos dos outros viverem as próprias vidas. Já que sofremos certas injustiças na infância, nós temos certas reivindicações legítimas às outras pessoas, à guisa de reparação. O fato de que as pessoas às quais fazemos estas reivindicações neguem qualquer papel causal nas injustiças que sofremos, passadas ou presentes, é irrelevante. Temos o direito de obter aquilo que é devido a nós por qualquer um que tenha os meios de provê-lo. Por conseguinte nós, os sem-qualquer-coisa, temos direito ao tempo, aos esforços, aos talentos e ao dinheiro daqueles que têm mais do que nós.
“Ver a mim mesmo como vítima inocente da injustiça, e ver os outros como vilões cruéis, gananciosos e mesquinhos, é meu jeito de me relacionar com o mundo. Posso me unir a outros que se sentem como eu me sinto, e este tipo de relacionamento preenche uma parte do vazio e acalma parte da insegurança que vem de minha infância. É especialmente importante que nessa união eu me sinta ligado a algo e a alguém. Estar conectado desse jeito me deixa seguro e tranqüilo, e reduz minhas ansiedades em relação à vulnerabilidade, ao desamparo, à separação e ao abandono que ficaram de minha infância. Eu também posso conseguir simpatia e piedade pelo meu sofrimento; isso me ajuda a compensar a falta de ternura que experimentei quando criança. De fato, minha união com outras vítimas de vilões cria uma família de sofredores e uma confederação de vítimas com as quais consigo me identificar. Todos nós vemos a nós mesmos como nobres mártires unidos em nossas dores, em nossa inveja, em nossa auto-piedade e em nossa piedade mútua. Unimo-nos também em nossa ira e ódio pelos vilões de nossas vidas, passados e presentes. Com isto, sinto-me justificado ao agir com raiva e de maneira destrutiva contra os vilões. Além do mais, quando vejo que meus problemas são causados pelos outros, eu posso ser odioso e vingativo com eles, evitando assim odiar e punir a mim mesmo.
“O jeito com que vejo as vítimas e os vilões me permite entender a condição humana. O mundo consiste de pessoas inocentes que sofrem e de pessoas cruéis que fazem os primeiros sofrerem. Nós que sofremos não somos de nenhum modo responsáveis por nosso sofrimento. Nossa dor nunca é provocada por nossos próprios erros, sejam de ação ou de omissão. Nossa dor é causada por pessoas egoístas e mesquinhas, e por instituições malvadas como o capitalismo, que permite que pessoas ricas e poderosas explorem as minorias pobres e fracas. Tendo esta visão de mundo, consigo me convencer de que a minha desconfiança do mundo não é um legado neurótico de minha infância, nem uma distorção paranóide da realidade. É uma percepção perfeitamente natural e precisa do aterrorizante estado das relações humanas. Os únicos pontos luminosos neste mundo infeliz são os esquerdistas radicais modernos. Se aparecer a oportunidade, estes homens e mulheres heróicos conseguirão: derrotar os vilões de nossas vidas; deixar-nos seguros e tranqüilos; unir-nos em zelo amoroso uns pelos outros; e satisfazer nossa vontade de depender de líderes poderosos.
“Se puderem conquistar um poder político suficiente, nossos líderes esquerdistas radicais criarão uma sociedade utópica. Na verdade, o moderno Estado-Mamãe é a mãe idealizada de meus sonhos, um benfeitor onipotente com poderes mágicos para acabar com o sofrimento humano. Eu encaro essa entidade como uma criança que adora sua mãe amorosa, como um adolescente que idolatra uma estrela de rock, como um fiel que venera a divindade. Sob o moderno Estado-Mamãe eu não temo nenhum mal, porque o Governo elimina todas as privações, satisfaz todas as vontades, repara todas as injustiças. Isto é o espírito do mundo de Hegel. Ele não somente cria o contexto das relações humanas, mas é a realidade final das relações humanas. Em uma fusão mística com esse espírito, vou experimentar a unidade do cidadão e da sociedade, a conexão de todos com todos, a abolição da separação, e o fim da alienação em toda a existência humana. Não mais me sentirei solitário ou abandonado; minha angústia existencial se dissolverá em uma comunhão com o coletivo. Pertencerei a todos e todos pertencerão a mim. Estarei finalmente seguro, finalmente serei livre de necessidades, livre de desconfiança. Nessa minha fusão com o estado grandioso, alcançarei não apenas a segurança da confiança básica; sentirei-me conectado à própria alma da humanidade. Além do mais, em minha campanha coletiva contra o individualismo, alcançarei corroboração, vingança e significado. Minhas paixões serão finalmente justificadas na nobre guerra contra o egoísmo. Minha vida terá verdadeiro significado em uma campanha histórica contra o mal.”