Autora: Emily Esfahani Smith
Tradução: André Carezia
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Nos últimos meses, houve vários acontecimentos desoladores a nos lembrar o aumento, por todo o país, dos suicídios, um tema sobre o qual escrevi em minha primeira coluna “Modos & Moral” em outubro (“Life on the island”, A Vida na Ilha). Destes, o mais falado de todos foi o de L’Wren Scott. A designer de moda de 49 anos foi achada morta em seu apartamento na cidade de Nova Iorque, apartamento este que foi aparentemente comprado para ela por Mick Jagger, seu namorado da época.
Uma semana depois, a secretária de educação da cidade de Nova Iorque, Carmen Fariña, convocou uma reunião fechada com os diretores para discutir a epidemia de suicídios entre os alunos da cidade. Graças ao fato do New York Post ter publicado a estória, sabemos agora que os suicídios estão em alta no meio juvenil da cidade: há dois anos atrás, nove alunos cometeram suicídio; no último ano, quatorze; e, nestes primeiros meses de 2014, doze já cometeram suicídio em Nova Iorque.
Em março, alguns voluntários se reuniram em Washington para instalar 1892 bandeiras americanas no [parque] National Mall, lembrando cada veterano que cometeu suicídio desde o início de 2014. Faça a conta: são vinte e dois veteranos se suicidando por dia. Outro número trágico: desde 2001, o ano que marca o início das guerras no Iraque e Afeganistão, mais soldados da ativa se mataram do que morreram em combate.
O aumento no número de suicídios veio acompanhado pelo sumiço das questões morais que antigamente cercavam aqueles. G. K. Chesterton foi um dos nossos últimos críticos vigorosos do suicídio. Sua insistência em dizer que o suicídio é imoral soa estranha aos nossos ouvidos individualistas: “O suicídio não é apenas um pecado; é o pecado”, escreveu Chesterton. “É o mal final e absoluto, a recusa em se interessar pela existência; a recusa em fazer o juramento de lealdade à vida. O homem que mata um homem, mata um homem. O homem que mata a si mesmo, mata todos os homens; do seu ponto de vista, ele aniquila o mundo”. Chesterton prossegue dizendo que o ato suicida é egoísta: “Um suicida é um homem que dá tão pouca importância a qualquer coisa além dele, que ele quer ver o fim de tudo”. Seria difícil imaginar alguém escrevendo coisas assim polêmicas hoje. Não consideramos que o suicídio é a catástrofe moral que pessoas como Chesterton antigamente pensavam.
Nossa cultura contemporânea, ao contrário, trata o suicídio como um problema médico – uma “questão de saúde pública”, como o psicólogo e pesquisador Joshua Rottman afirmou recentemente ao The Atlantic. De acordo com seu novo estudo, tanto as pessoas religiosas quanto as não-religiosas possuem uma inclinação moral contrária ao suicídio, e a inclinação nasce das “reações de repugnância” que elas têm quando confrontadas com estórias de suicídios. Cometer suicídio, elas pensam, contamina a alma. Para Rottman, isto é um problema. Estas reações são irracionais e portanto nocivas: “A questão valendo 1 milhão de dólares”, diz Rottman, é “como tirar do suicídio o estigma de coisa impura”. E continua: “Isto não quer dizer que devemos começar a achar que suicídios são uma coisa completamente boa, mas não acho que devemos tratá-los como tabu (sendo assim assunto proibido em conversas educadas). Ao invés disso, devemos lidar como eles como se fossem uma questão de saúde pública, e buscar maneiras de efetivamente aumentar a prevenção.” Mas Rottman está errado ao desmoralizar a noção de suicídio. Se queremos seriamente ajudar as pessoas a superar suas noites escuras da alma, devemos insistir – com Chesterton – que o suicídio é um problema moral, e não apenas clínico.
É exatamente isso que faz um novo e importante livro. Stay: A History of Suicide and the Philosophies Against It [“Fique: Uma História do Suicídio e as Filosofias Contrárias a Ele”], da poeta e filósofa Jennifer Michael Hecht, desafia a nossa cultura de aceitação do suicídio, e revigora os argumentos morais contrários a ele. Em uma época em que poucos filósofos e intelectuais oferecem argumentos não religiosos fortes e convincentes contra o suicídio, o livro de Hecht surge como uma advertência de que nossa abordagem liberal em relação ao suicídio é relativamente nova, e na verdade bastante radical, e deve ser claramente contestada. Em parte uma história intelectual, em parte uma polêmica – e branda – contra o suicídio, o livro preenche um vazio no diálogo cultural a respeito da escolha de terminar a vida de alguém. Hecht escreve: “Os argumentos contra o suicídio, os quais pretendo reviver na consciência pública, afirmam que o suicídio é errado, que ele prejudica a comunidade, que ele estraga a humanidade, que ele antecipa injustamente seu próprio eu.”
Hecht nos recorda que através da história – no ocidente ao menos – sempre houve forte pressão social e argumentos filosóficos contra o suicídio. Embora os antigos em geral já escrevessem contra o suicídio, suas posições foram defendidas com máximo vigor por pensadores cristãos, que encaravam o suicídio como um pecado – uma violação da lei moral de Deus. A crença cristã sobre o suicídio foi articulada de modo mais claro por Santo Tomás de Aquino, que achava, como escreve Hecht, que “o suicídio é cruel para com a comunidade, é cruel para consigo mesmo, e Deus mandou não fazer.” Aqueles que violavam a lei moral, tirando as próprias vidas, enfrentavam um destino póstumo pavoroso. Seus corpos eram torturados e arrastados pelas ruas. Suas propriedades eram confiscadas pela Igreja, e suas famílias eram deixadas sem nada.
Esta visão começou a mudar durante o Iluminismo. Os filósofos seculares daquela época, como David Hume e o Barão d’Holbach, fizeram tudo que puderam para empurrar o cristianismo para a irrelevância filosófica. Uma nas baixas na guerra contra a religião foi a proibição moral contra o suicídio, que Hume associava, como aponta Hecht, com a “superstição da Europa moderna.” Foi um caso clássico de jogar o bebê junto com a água do banho. Para Hume e d’Holbach, o suicídio era um caminho permitido para escapar ao sofrimento, e a justificativa deles era quase sempre assustadoramente desumana. Pergunta d’Holbach: “Além do mais, que auxílio ou que vantagem uma sociedade pode obter de um miserável desgraçado reduzido ao desespero, de um misantropo sufocado de dor, de um miserável atormentado pelo remorso, que não tem mais nenhum motivo para se considerar útil aos outros, que abandonou-se, e que não se interessa mais em preservar sua vida?”
A visão pró-suicida, que “agora é uma atitude que define a cultura secular, é um erro e precisa ser repensada”, escreve Hecht. Produziu uma confusão moral. Os seculares que estão entre nós rejeitam o cristianismo e as idéias cristãs sobre o suicídio – e certamente a resposta medieval a ele – mas isto não quer dizer que devemos concluir que o suicídio é permitido. O argumento não-religioso contra o suicídio, afinal, já foi encampado por um grupo admirável de pensadores, desde Kant até Durkheim até (o suicida) Wittgenstein. Como cultura, esquecemos seus argumentos, mas precisamos revivê-los e encampá-los de modo a salvar as pessoas suicidas da tirania de suas emoções. O suicida precisa perceber que o sofrimento é parte natural e passageira da vida, que ele precisa persistir, e que ele vive não apenas para si mesmo mas para os outros.
O peso moral do argumento de Hecht fica claro quando consideramos os efeitos de longo alcance do suicídio. Eles se estendem além da morte do suicida, e da dor de seus amados. O suicídio é contagioso como uma doença infecciosa. Quando uma pessoa em uma comunidade tira sua vida, não é incomum que outras pessoas sigam seu exemplo, criando o que os cientistas chamam de “suicídio em série”. Por isso é que, usando um potente floreio retórico, Hecht chama o suicídio de assassinato “retardado”. Quando você decide tirar a sua vida, ela alega, você não mata apenas você mesmo, mas também seu vizinho, seu colega de escola, seu irmão de luta.
A própria idéia de suicídio pode levar ao auto-assassinato. O romance de Goethe, Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774) – sobre um jovem que se mata quando a mulher que ele ama o rejeita – iniciou após sua publicação uma onda de suicídios em série na Europa. O chamado “efeito Werther” deve fazer-nos parar e refletir sobre o modo como a mídia faz a cobertura dos suicídios reais, e sobre a maneira dos artistas e criadores abordarem o suicídio em suas obras. Neste sentido, Hecht cita um estudo do New England Journal of Medicine a respeito de três filmes cujos aspectos centrais do enredo são suicídios. O estudo “descobriu que os suicídios aumentaram depois de dois deles, ambos com foco na vítima de suicídio. O outro filme, não associado ao crescimento na taxa de suicídio, se concentrou nos pais e em sua angústia.” Idéias têm conseqüências: “Elas podem influenciar as pessoas tanto em direção à morte quanto para longe dela.” Hecht cita uma pesquisa que mostra que, das pessoas que tentaram cometer suicídio e falharam, a maior parte é grata pela falha. Elas não tentam mais tirar suas vidas, e admitem que “a tentativa inicial foi um ato impulsivo.”
Em minha coluna de outubro passado, indiquei uma pesquisa – de Durkheim e da ciência social moderna – que mostra que o crescimento do suicídio veio acompanhado pelo crescimento do individualismo. O papel do indivíduo na sociedade mudou dramaticamente desde o Iluminismo. Antes, a influência da tradição judaico-cristã no ocidente colocava restrições na vontade do indivíduo. A moralidade estava organizada em torno da vontade de Deus e de nossos deveres comunitários – e o suicídio era considerado uma afronta a ambos. Hoje, porém, nosso sentido de certo e errado está organizado mais em torno da experiência individual do que no bem da comunidade.
O famoso filme A Sociedade dos Poetas Mortos (1989) é um bom exemplo da resposta moderna e individualista ao suicídio. O filme gira em torno de um grupo de colegiais veteranos em uma escola de elite, um internato apenas para meninos, em New England. O líder do problemático grupo, Neil, enfrenta um dilema comum de adolescente. Seus pais querem que ele faça medicina, mas ele quer ser ator. Contrariando o desejo de seu pai, Neil faz o papel de Puck na montagem de Sonho de Uma Noite de Verão que a escola realiza. Seu pai decide removê-lo do idílico internato e mandá-lo para a academia militar, a fim de prepará-lo melhor para Harvard e uma carreira de médico. Quando Neil volta para sua casa, ele está em um turbilhão emocional. Acha que sua vida acabou. Acha que não será capaz de concretizar seu sonho de ser um ator. Ele se convence de que a solução para o problema é se matar na casa de seus pais, os quais encontram seu corpo mais tarde naquela noite.
Lamentavelmente, a estória romantiza o suicídio dele. Neil veste uma coroa de espinhos antes de tirar a própria vida, estabelecendo uma ligação espúria entre seu último ato de vontade e a submissão de Cristo à vontade do Pai. Somos levados a concluir que o adolescente é uma vítima – e seu pai é o vilão, responsável por sua morte e merecedor do sofrimento que sente ao ver seu filho morto. O filme convida-nos a simpatizar com a situação infeliz de Neil. A morte de Neil é apresentada como se fosse uma expressão da liberdade, uma fuga da infelicidade extrema, do sofrimento, e de outras barreiras que o impediriam de viver a vida do jeito que ele gostaria. Mas o fato é que a decisão de Neil é impetuosa e acima de tudo egoísta. Ao contrário de Cristo, ele não entrega sua vida por amor aos outros; seu suicídio, ao invés disso, é um ato de vingança. Mesmo assim, somos levados a concluir que ele é uma espécie de herói que morre porque o mundo é imperfeito e ele não consegue atingir a plenitude de seu ideal artístico.
Hecht impele-nos a “aposentar a idéia de que cada um é livre para tirar sua própria vida.” Hecht aqui realmente insiste em que repensemos o relacionamento do indivíduo com sua comunidade. O suicídio, que pode acabar com a infelicidade do indivíduo, é causa de incontáveis infelicidades na comunidade. Tirar a própria vida não é, portanto, uma escolha puramente pessoal, cujos efeitos são sentidos apenas pelo morto. Impõe um julgamento profundo contra o mundo partilhado por todos.
Nossa atitude perante o suicídio diz muito sobre o quanto valorizamos a vida e as comunidades que nos sustentam. Para nós não deveria ser surpresa que o suicídio tenha ganhado aceitação em nossa cultura; nossas comunidades estão se dissolvendo; o indivíduo, livre das muitas amarras tradicionais, se considera o senhor de seu próprio destino. Embora haja certamente casos em que a morte é com justiça considerada uma libertação do sofrimento, já é tempo de reconsiderar nossa crença de que, como indivíduos, somos livres para escolher a hora e o lugar desta libertação. Como assinala Hecht: “O sentido da vida é maior do que o indivíduo.”
(Traduzido do original em inglês, publicado em maio de 2014 na revista americana de cultura The New Criterion. O artigo original está disponível para assinantes no seguinte link: http://www.newcriterion.com/articles.cfm/The-catastrophe-of-suicide-7902)