Autor: Gerald McDermott[*]
Tradução: André Carezia
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“O papa é católico?” Por mais de um século, era assim que nós os anglicanos brincávamos a respeito de qualquer coisa que parecesse muito óbvia. Mas agora precisamos perguntar – a sério – se o papa é ou não um protestante esquerdista.
No começo deste mês, um teólogo americano foi pressionado a pedir demissão de seu cargo de conselheiro teológico na Conferência dos Bispos Católicos dos EUA (USCCB). O que o Pe. Thomas Weinandy fez para merecer esta reprimenda pública? Ele tornou pública uma carta de julho ao papa, na qual ele acusava o Santo Padre de estar causando uma “confusão crônica”. A exortação apostólica Amoris Laetitia, escrita pelo papa, é “intencionalmente ambígua” em temas importantes de moral e doutrina. Ela “corre o risco de pecar contra o Espírito Santo, o Espírito da verdade”, e “diminui a importância da doutrina cristã” ao incentivar mudanças no ensino tradicional católico a respeito do matrimônio e do divórcio. O papa “ressente-se” com as críticas, e “zomba” daqueles que contestam a Amoris Laetitia chamando-os de “fariseus atiradores de pedras”.
Eu, sendo alguém de fora, não posso deixar de me perguntar se o papa e a USCCB não se sentiram especialmente provocados pela sugestão, feita por Weinandy, de que Jesus permitiu esta polêmica com a intenção “tornar manifesta a fraqueza de fé de muitos dentro da Igreja, mesmo entre muitos de seus bispos”. Os católicos que se decidam – mas eu admito que tenho muitas dúvidas a respeito da fé do papa Francisco, a qual parece, se não fraca, ao menos diferente daquela que se acha na tradição católica.
Antes mesmo da publicação de Amoris Laetitia em março de 2016, Francisco já tinha levado muitos a duvidarem de sua fidelidade a esta tradição. Em 2014, o relatório intermediário do Sínodo Extraordinário da Família recomendava aos pastores enfatizarem os “aspectos positivos” da coabitação e de um novo casamento civil após um divórcio. Ele afirmou que a multiplicação dos pães e peixes, feita por Jesus, era na verdade um milagre de partilha, e não de multiplicação (2013); disse a uma mulher que ela podia receber a Sagrada Comunhão mesmo sendo casada invalidamente (2014); postulou que as almas perdidas não vão para o inferno (2015); e afirmou que Jesus havia suplicado o perdão de seus pais (2015). Em 2016, ele disse que Deus havia sido “injusto com Seu filho”, anunciou suas orações pela intenção de construir uma sociedade que “coloque a pessoa humana no centro”, e declarou que a desigualdade é “o maior mal que existe”. Em 2017, fez uma piada: “no interior da Santíssima Trindade eles discutem a portas fechadas, mas externamente dão a impressão de unidade”. Jesus Cristo, afirmou, “se fez de diabo”. “Nenhuma guerra é justa”, pronunciou. Ao final da história, “tudo será salvo. Tudo”.
Weinandy e outros críticos católicos já destacaram afirmações e sugestões alarmantes na própria Amoris Laetitia. A exortação declara que “ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho!” Em dezembro de 2016, os filósofos católicos John Finnis e Germain Grisez argumentaram em “Abusando de Amoris Laetitia” que, muito embora essa afirmação reflita uma tendência entre pensadores católicos desde Karl Rahner e Hans Urs von Balthasar, ela contradiz as claras afirmações dos Evangelhos e os ensinamentos tradicionais católicos: há sim “punição sem fim” no inferno. Finnis e Grisez criticam o raciocínio de Amoris Laetitia quando afirma que alguns fiéis são muito fracos para obedecer os mandamentos de Deus, e que podem viver em estado de graça mesmo cometendo, habitual e continuamente, pecados “em matéria grave”. Imitando o que Joseph Fletcher – um episcopaliano – ensinava em suas aulas de “ética situacional” em 1960, a exortação sugere que há exceções em todas as regras morais, e que simplesmente não existe algo como um “ato intrinsecamente mau”.
Não sinto prazer com a agonia de Roma. Por décadas, os anglicanos ortodoxos e outros protestantes em luta para resistir às apostasias do cristianismo esquerdista acostumaram a olhar para Roma em busca de apoio moral e teológico. A maioria dos anglicanos reconhecia estar lutando contra a revolução sexual, que se apropriou da Igreja Episcopal – e também da sua matriz do outro lado do oceano – e corrompeu-a. Primeiro foi a santidade da vida e a eutanásia. Depois foi a prática homossexual. E agora o casamento gay e a ideologia transgênera. Durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, nós que não somos católicos e estávamos debatendo teologia moral podíamos nos apoiar em argumentos embasados e convincentes emanando de Roma e dizer: com efeito, “a porção mais velha e maior do corpo de Cristo concorda conosco, e o faz com notável sofisticação.”
Aqueles de nós que continuam a lutar pela ortodoxia, tanto em teologia dogmática quanto em teologia moral, sentem falta dos dias em que havia um farol claro brilhando do outro lado do Tibre. Porque agora, ao que parece, até Roma foi infiltrada pela revolução sexual. O centro não está aguentando[**].
Embora perturbados, nós não devemos desesperar. Pois a demonstração de coragem e de princípios feita por Tom Weinandy nos recorda que Deus acende luzes proféticas quando dias obscuros rondam a Sua Igreja.
[*] Traduzido do artigo original “Is Pope Francis a Liberal Protestant?”, escrito por um teólogo anglicano e publicado em novembro/2017 na revista First Things.
[**] No original: “the center is not holding”. A frase é do poema “The Second Coming”, publicado em 1920 pelo poeta irlandês William Butler Yeats.