Autor: Anthony Daniels [*]
Tradução: André Carezia
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Aos dez anos de idade, mais ou menos, eu tinha o costume de desenhar cidades. Era muito fácil, e eu ficava espantado com a confusão que todos tinham feito antes de mim. A única conclusão que eu pude tirar foi que, até então, o mundo era povoado de idiotas. Bem no meio da cidade ficava o prédio do parlamento, que era como a basílica de São Pedro, só que em escala maior e mais grandiosa. Dava-lhe a volta uma rua circular de oito faixas, da qual irradiavam, simetricamente, seis largas avenidas. O que os deputados deviam fazer para chegar ao parlamento – driblar o tráfego, suponho – não era questão que me dizia respeito. Eu estava projetando cidades e edifícios, e não conveniência para seres humanos. Ao longo das avenidas se localizavam as instituições que, então, eu considerava essenciais para as cidades: o museu de história natural, a galeria de arte, o palácio real. Tudo era em grande escala, e não era nem planejada nem permitida nenhuma bagunça do tipo criado por comércios e outros estabelecimentos não-essenciais.
Enquanto eu desenhava as minhas cidades, Brasília estava sendo construída, embora com um vocabulário arquitetônico diferente: em vez de fachadas neoclássicas de mármore, concreto armado. Em termos de design e planejamento urbanístico, entretanto, não estava muito à frente das minhas; porém, ao contrário dos meus projetos, foi posto em prática.
A primeira coisa a dizer sobre Brasília é que se trata de uma assombrosa conquista, uma façanha; e isto independe de você achar que é ruim, boa, ou alguma coisa intermediária. No local onde, até pouco mais de meio século atrás, nada existia além de um planalto remoto, quente e cheio de arbustos, agora se encontra uma cidade funcional de mais de três milhões de pessoas. É o suficiente para suscitar admiração.
Talvez ainda mais surpreendente seja o fato de Brasília ficar pronta e funcional em menos de quatro anos após o lançamento da primeira fundação. O sonho de transferir a capital do litoral para o interior era quase tão antigo quanto o próprio Brasil; na verdade, tal transferência já era um requisito constitucional de longa data, ainda que fosse letra-morta. A idéia era tanto econômica quanto estratégica: a mudança desenvolveria o interior, ao mesmo tempo que protegeria o país contra a ocupação estrangeira.
Quem finalmente ordenou a construção de Brasília foi o presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, um ex-urologista formado em Paris. De acordo com a história, antes das eleições um homem perguntou ao Kubitschek se ele cumpriria, caso eleito, o requisito constitucional de transferir a capital, e ele afirmou que sim. Não sei se por motivos de probidade nada universal entre políticos, ou se por motivos mais pragmáticos, Kubitschek manteve a palavra, mas impôs a condição de que a nova capital fosse completada em seu mandato presidencial. Assim como muitos, talvez a maioria, ou mesmo todos os projetos grandiosos, o custo econômico não foi levado em conta: Kubitschek foi, com efeito, um “Pedro, o Grande” brasileiro, mas sem a crueldade e a indiferença para com a vida humana. Infelizmente, sem o bom-gosto também.
Esta diferença, sem dúvida, teve mais a ver com o Zeitgeist artístico do que com as qualidades individuais dos dois homens. Kubitschek tem um mausoléu em Brasília. O seu corpo está preservado em um sarcófago de pedra, dentro de uma rotunda pouco iluminada, completa, com um museu de memorabilia que inclui o seu traje vespertino de gravata branca e decorações estrangeiras. A coisa toda é estranhamente soviética para um país que parece tão insovietizável como o Brasil; tem cara de um híbrido do túmulo de Lenin com o museu das “provas de amor” de Bucareste, dedicado aos presentes que Nicolae e Elena Ceausescu receberam de vários lugares do mundo, tais como os cálices e tigelas feitos de casca de coco e entalhados pelos seus fervorosos admiradores em Samoa.
No mausoléu há uma fotografia de Belo Horizonte, onde Kubitschek foi prefeito em 1940. Era evidentemente um local muito prazeroso em termos arquitetônicos, uma cidade européia com bulevares cercados de árvores, ao longo dos quais seria agradável passar o dia de café em café. Tudo tinha uma escala humana, mas, em certo sentido, era indigno de nota, porque nenhum arquiteto tinha pensado em construir com o objetivo de tornar Belo Horizonte completamente diferente das outras cidades. Não havia nada no quadro que dissesse: “Aqui é Belo Horizonte, e mais lugar nenhum.”
Menos de vinte anos depois, a mudança de bom-gosto manifesta na construção de Brasília é surpreendente; representa uma revolução mais profunda do que muitas revoluções políticas. Foi, é claro, uma revolução de cima, não de baixo; e aliás, em grande parte, insincera. Sobrevoando Brasília de helicóptero, eu não pude deixar de notar que, nos subúrbios mais abastados da cidade, os ricos se apressaram em construir residências neo-coloniais (algumas de gosto duvidoso), e quase nenhuma no estilo ultra-modernista. Pode-se discutir os papéis que a economia e a necessidade social desempenharam na revolução, mas a alteração no bom-gosto foi certamente de acordo com as doutrinas arquitetônicas dos mandarins em voga na época.
As três maiores personalidades na construção de Brasília foram o urbanista Lúcio Costa, o arquiteto Oscar Niemeyer, e o paisagista Burle Marx. Este último, que conhecia a flora de todas as regiões do Brasil, e criou os jardins planejados no interior e no exterior de vários prédios importantes da cidade, fez uma obra de grande beleza e elegância. Infelizmente, o seu talento e o seu bom-gosto acabaram quase sempre desperdiçados pelo brutalismo dos outros dois.
Costa e Niemeyer eram ambos admiradores e seguidores de Le Corbusier e dos comunistas – daí a estética desumana. Niemeyer, ainda vivo aos 103 anos [**], é, sem dúvida, um homem desinteressado financeiramente (embora ninguém nunca tenha sugerido que Lenin, Stalin, ou mesmo Hitler, estivessem nisso pelo dinheiro – eram monstros desinteressados); porém, é preciso certamente uma dose considerável de estupidez, uma deficiência na imaginação moral, ou um egoísmo mais pronunciado do que o mais voraz banqueiro de Wall Street para se proclamar comunista depois de todo o desastre humano que a doutrina provocou no século passado. Na verdade, há um pronunciamento de Niemeyer que representa não apenas o seu egoísmo, mas sintetiza grande parte do egoísmo doentio de muitos artistas e arquitetos modernos: “Quem quer que vá a Brasília pode gostar ou não dos seus palácios, mas não pode dizer que um dia já viu alguma coisa semelhante.” Isto continuaria sendo verdade, evidentemente, se Brasília tivesse sido construída com manteiga congelada, mas a originalidade de Brasília não é a questão.
A absoluta incompetência de Costa como planejador de cidades, ao menos do ponto de vista de toda a humanidade urbanizada que existiu antes, beira o ridículo. É claro que o julgamento da competência de um homem depende do que se crê que ele esteja tentando fazer. Aprendi esta difícil lição na Tanzânia, onde o presidente Julius Nyerere (atualmente em processo de canonização) tinha reduzido o país, através das suas políticas, a níveis inéditos de mendicância, ao mesmo tempo em que pregava sem cessar a necessidade de desenvolvimento econômico. Daí eu, ingênuo, concluí que ele era incompetente ao extremo, mas as escamas caíram dos meus olhos quando eu assumi que a sua meta era permanecer como líder supremo por vinte e cinco anos sem muita coisa que lhe fizesse oposição. Na verdade, ele era supremo na competência.
O que é que Costa fez, então (vamos esquecer, por ora, as suas intenções)? Ele organizou uma cidade de acordo com os conceitos de Le Corbusier: aqui, embaixadas; ali, hotéis; acolá, locais de lazer – cada quarteirão com uma função, separados por enormes campos abertos, e acessíveis apenas por meios motorizados de transporte. Tampouco foram deixadas áreas de sombra, já que alguns excêntricos poderiam querer caminhar ou andar de bicicleta: era preciso desencorajá-los diante da perspectiva de insolação – a temperatura costuma passar dos 38 graus sob o sol escaldante (o mesmo problema, por sinal, existe na cidade de Chandigarh, na Índia, planejada por Le Corbusier; o que sugere, para empregar uma frase que os marxistas adoram, que não se trata de uma coincidência).
Os poucos bancos de concreto – na Praça dos Três Poderes, por exemplo – deviam ser construídos de modo a provocar, em cinco minutos, dor nas costas ou no traseiro de eventuais mendigos; não se pode evitar a lembrança do comentário profético do Marquês de Custine sobre os espaços públicos de São Petersburgo: uma aglomeração de gente neles seria uma revolução. A possibilidade de uma aglomeração espontânea de pessoas em Brasília é praticamente inexistente, porém; é uma cidade para golpes de Estado, e não para revoluções. Talvez isto seja uma das razões ocultas do seu projeto, do mesmo modo que os bulevares de Haussmann foram projetados para que os soldados pudessem mirar facilmente na turba revolucionária.
O homem, em Brasília, é essencialmente um inseto, uma espécie de formiga, ou ainda uma bactéria nociva. Há um plano em andamento para garantir que, antes da Copa do Mundo de 2014, os carros na área central não estacionem na rua, e sim no subsolo: carros estacionados na rua são um sinal da espontaneidade humana e da tendência para o caos. Le Corbusier chegou a escrever certa vez em tom de exclamação: “O plano, o plano é tudo! O plano precisa ser a lei.” Que é a humanidade, e que dirá um homem, se comparada à espécie de cidade que eu desenhava aos dez anos de idade?
Quanto aos edifícios propriamente ditos, eu devo assinalar, por questão de justiça, que uma meia dúzia são admiráveis; e um deles, o Palácio Itamaraty (o Ministério das Relações Exteriores) é mesmo bonito, por certo um dos melhores edifícios da segunda metade do século XX. De modo quase excepcional, é adaptado ao clima, com o seu imponente andar superior aberto ao ar que nunca esfria. Bem proporcionado, elegante, e feito de um concreto bem trabalhado, sem aparência bruta, como eu jamais vi em outra parte, se assenta em meio a um adorável espelho d’água ajardinado. O salão de recepções, revestido em pedra branca, com uma graciosa escada helicoidal feita da mesma pedra, é de uma elegante frieza – quase anti-séptico, eu diria.
Será que um arquiteto, à maneira de um escritor, deve ser julgado por sua melhor obra? É tão pouco provável, afinal, um arquiteto construir por acaso um belo edifício quanto um escritor produzir por acaso um grande romance. O talento é necessário em ambos os casos. Só que a analogia não é bem exata: se não for por mais nada, um edifício ruim não pode ser descartado com a mesma facilidade de um livro ruim. Uma arquitetura de má qualidade é inevitável; livros de má qualidade, não. Edifícios ruins não ficam escondidos, mofando em prateleiras de bibliotecas: eles desfiguram cidades inteiras. E o fato é que Niemeyer é ruim na maior parte do tempo. Na realidade, bem ruim.
O seu longo desfile militar de prédios retangulares de vidro – os ministérios – ao longo do eixo central da cidade é uma celebração arquitetônica do cruel poder burocrático. Caixotes de vidro são especialmente mal-adaptados a um clima quente, no qual o sol brilha quase o tempo todo, e poucas sensações são mais desagradáveis do que a da luz solar golpeando a pele coberta de roupas após ter atravessado um vidro. A solução de Niemeyer para o problema técnico que ele mesmo criou foram os hediondos brise-soleil do Le Corbusier: lâminas ajustáveis de metal que desviam os raios, e que em pouco tempo dão aos edifícios a aparência de favela. E, de fato, quando se observa através do vidro que há no lado que não precisa dos brise-soleil, esta impressão é reforçada pela desordem singular do que se vê: diversos arranjos com espécies diferentes de cortinas e uma variedade arbitrária de móveis e equipamentos; em resumo, a impressão estética de um projeto de moradia num bairro sinistro de Chicago.
O funcionalismo, como de costume, não funciona; e o repúdio à ornamentação, em parte puritano e em parte ditado por uma ideologia estética, é derrotado pela necessidade humana. Alguns palácios – a Suprema Corte, por exemplo – têm uma aparência elegante quando inundados de luz à noite (estão entre as melhores obras de Niemeyer), mas causam uma impressão completamente diferente à luz do dia. O concreto da estrutura futurista já se deteriorou, conforme o esperado; a caixa de vidro por dentro da varanda aranhosa é uma bagunça precisamente porque abriga pessoas que têm de trabalhar, e elas usam cadeiras, mesas e outros acessórios. A caixa de vidro, obviamente, foi imaginada sem nada disto: a sua perfeição era tão abstrata quanto, digamos, um esquema de coletivização da agricultura.
Na sua pior parte, a arquitetura de Niemeyer é tão ruim que é quase cômica; ou melhor, seria engraçada se não fosse tão permanente, e não tivesse sido declarada patrimônio da humanidade pela UNESCO. O Teatro Nacional, por exemplo, é uma pirâmide truncada, feita de cimento queimado, cuja feiúra não vem deste mundo. Se o inferno precisasse de um arquiteto, Niemeyer teria boas chances. Se me pedissem para adivinhar o que é, a partir do exterior e do interior do edifício, eu acho que arriscaria dizer que se trata de um abrigo anti-nuclear, e não de um teatro. Os corredores recordam, em menor escala, aqueles túneis de guerra que os nazistas construíram na lateral de uma colina quando ocuparam Jersey. A equipe de Costa e Niemeyer conseguiram combinar as conseqüências desagradáveis do gigantismo com as claustrofóbicas de O Poço e o Pêndulo[***]: não é pouca proeza, mas também não é uma que eu queira ver repetida.
Dito tudo isto, a sinceridade me impele a registrar um fato que me colocou num estado desconfortável de dissonância cognitiva. Muitas pessoas me contaram que a população de Brasília, metade da qual já nasceu ali, gosta muito de viver na cidade, e não tenho motivos para duvidar. O primeiro pensamento que me ocorreu foi que isto acontece porque, mesmo com todas as falhas estéticas da cidade, a vida ali é relativamente fácil e conveniente quando comparada a outras cidades brasileiras que estão sempre com o trânsito congestionado e a taxa de crimes em alta. Mas a criminalidade não é exatamente desconhecida em Brasília; na verdade, os blocos de apartamento corbusianos, construídos sobre pilares para que os andares térreos sejam áreas abertas, poderiam ter sido projetados para tornar mais fácil a vida do assaltante e do estuprador. O fato de que os outros brasileiros, ao se mudarem para Brasília, detestem-na vigorosamente, sugere que a mera conveniência corporal de se viver numa cidade moderna (boa parte da qual, aliás, está distante do projeto original, sendo composta de torres de vidro que poderiam estar em qualquer lugar), que é tão boa para eles quanto para os nativos do local, não explica o apreço destes últimos por ela. E isto é um pensamento bastante incômodo, já que transforma os arquitetos naquilo que Stalin, ídolo de Niemeyer, achava que os escritores eram ou deviam ser: engenheiros da alma.
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Notas:
[*] O artigo original, em inglês, foi publicado na edição de outubro de 2011 da revista de cultura The New Criterion. Link para o original: https://newcriterion.com/issues/2011/10/brutal-blueprints.
[**] N.T.: Em 2011, data da publicação do artigo original.
[***] Conto de Edgar Allan Poe, publicado originalmente em 1842. Há uma tradução brasileira, publicada pela Companhia das Letras em 2008.