A Fraude de Abu Dhabi

Autor: Jules Gomes (*)
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2020-05-26-Abu_Dhabi

Roma – Um grupo de muçulmanos convertidos, que encaram a pena de morte por apostasia do Islã, está denunciando a declaração de Abu Dhabi como uma “fraude” por conta de “diferenças sutis mas significativas” no texto em árabe do documento.

Os ex-muçulmanos do mundo árabe também lamentam a ingenuidade do cardeal Gerhard Müller. Na edição de maio/junho da revista Communio, o prelado ortodoxo defendeu o acordo sobre a Fraternidade Humana em Prol da Paz Mundial e da Convivência Comum.

Müller insiste que o texto se concentra nos “direitos humanos fundamentais” e em “Deus como seu criador e garantidor,” porque “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e “os direitos humanos se baseiam na dignidade que o próprio Deus concedeu a cada ser humano.”

Numa análise preliminar da declaração (apresentada ao jornal Church Militant sob a condição de anonimato), os convertidos de língua árabe afirmam que a interpretação do cardeal Müller não se baseia nas “implicações teológicas islâmicas do texto em árabe,” e que isto reflete sua propensão a se deixar iludir pela “fraude” e pela “retórica fingida de direitos humanos.”

A fraude está nos detalhes

Os ex-muçulmanos observam que a “dissimulação linguística e teológica” começa já na primeira frase do acordo: “A fé leva o crente a ver no outro um irmão ou uma irmã que se deve apoiar e amar.”

Na versão em árabe, o “crente” é o “mu’min” – um termo islâmico que se refere somente àquele que crê na unidade estrita (tawhid) de Deus, rejeitando a Trindade, e em Maomé. A Sura 24:62 declara: “Os crentes (mu’min) são apenas aqueles que crêem em Ala e em Seu Profeta…”

Mais ainda: na versão em árabe não há nenhuma menção a “irmã”, já que a referência aqui é à comunidade islâmica (umma) e não à fraternidade universal de todos aqueles que crêem num Deus genérico.

Continuando: embora a declaração afirme “Em nome de Deus, que criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos e irmãs, a povoar a Terra,” os convertidos asseguram que “igualdade”, na versão árabe, não é um atributo de “seres humanos” mas se refere a outros “seres” denominados “criaturas”.

“É uma distinção essencial, já que no Islã não há igualdade entre seres humanos. Os não-muçulmanos não são iguais aos muçulmanos, e nem as mulheres são iguais aos homens,” disse ao Church Militant um convertido que praticava jurisprudência islâmica num país árabe.

“A ‘criação’ no Corão é diferente da criação na Bíblia,” disse ele. “O termo ‘Deus’ em inglês é genérico, mas na versão árabe o foco está no Deus islâmico que criou (a) os seres humanos, (b) o universo e (c) os outros seres – denominados ‘criaturas’ – os quais, no Islã, também incluem todos os outros seres não-humanos: os animais, os jinna (espíritos sobrenaturais abaixo do nível de anjos e demônios), e os seres satânicos.

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O estudioso da sharia nota ainda que o termo para “Deus”, na versão em árabe da frase de abertura da declaração, é Bismillah ( باسمِ الله); ele exclui todos os outros entendimentos de Deus, e também impõe o conceito islâmico da tawhid e o governo de Alá.

“O restante do texto desta citação se baseia na Sura 49:13: ‘Ó, humanidade, nós vos criamos de um macho e uma fêmea, e vos constituímos nações e tribos para que vos conheceis uns aos outros. O mais nobre entre vós diante de Alá é o mais piedoso de vós…’ Está implícito que isto se aplica somente aos muçulmanos,” explica ele.

Ao se referir à fraternidade entre todos os seres humanos, a versão em inglês declara: “Em nome da liberdade, que Deus concedeu a todos os seres humanos, criando-os livres…” Porém, a tradução árabe de “criando-os livres” ( وفطَرَهُم عليها ) afirma que Deus os criou de acordo com a fitrah.

“Esta fitrah é uma doutrina islâmica que afirma que todos os seres humanos são criados ‘muçulmanos’, ou seja, o DNA de cada ser humano é o Islã, conforme a Sura 30:30: ‘Assim, voltai vossa face para a religião (Islã) e inclinai-vos à verdade. [Aderi à] fitrah de Alá, segundo a qual Ele criou [toda] a humanidade…’,” sublinha o especialista.

Além do mais, “povoar a Terra” é a doutrina islâmica essencial da “vice-gerência”. Diz a Sura 2:30: “Criarei uma vice-gerência na Terra…” O termo corânico para “vice-gerência” é khalifah, e a Sura 6:165 declara: “Foi Ele que vos instituiu vice-gerentes da Terra, e elevou alguns de vós acima dos outros…”

“Esta ‘vice-gerência’ significa que nem todos são iguais na humanidade, mas são os muçulmanos que têm a supremacia na Terra,” observam os convertidos.

Crenças Contraditórias

Com tudo isso, Müller acredita que o pacto assinado em fevereiro de 2019, entre o papa Francisco e o grande Imã de al-Azhar Ahmad al-Tayyeb, não fez “nem o papa e nem o grande Imã renunciarem aos próprios credos, os quais se contradizem no conteúdo e nas questões essenciais.”

A declaração “não abre as portas para o relativismo dogmático e ético, nem renuncia à questão da verdade,” insiste ele.

“Se a declaração versa sobre igualdade e fraternidade, e se as doutrinas islâmica e cristã se contradizem mutuamente em ambos os temas, é de assombrar que um príncipe da Igreja (firmemente ortodoxo até o momento) de repente seja tão imprudente e irrefletido a ponto de se deixar enganar pela estratégia islâmica padrão de ‘dissimulação’ conhecida como taqiyya,” alertam os convertidos.

Uma coisa – e uma coisa bem importante – é pôr de lado os rancores históricos e a ignorância, ou superá-los; outra coisa é determinar se as antropologias profundamente distintas entre o cristianismo e o islã se encontram numa noção comum de ser humano que possui ‘direitos inalienáveis,’ escreve o estudioso Robert R. Reilly em Os Prospectos e Perigos do Diálogo Católico-Muçulmano.

“Na antropologia cristã, os seres humanos são criados à imagem de Deus, e são chamados a partilhar a vida divina. Estas duas noções são anátema para o Islã, que as considera blasfêmias,” explica ele.

O grupo de convertidos do Islã trabalha numa análise detalhada do texto árabe da declaração de Abu Dhabi. Quando pronta, eles esperam submetê-la às autoridades da Igreja.


(*) Traduzido por André Carezia. O artigo original, publicado em 27 de maio de 2020 no jornal católico Church Militant, está disponível no seguinte link:

https://www.churchmilitant.com/news/article/converts-counter-cardinal-on-abu-dhabi-deception

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